quinta-feira, 15 de maio de 2008

A Desmedida de Juliano

Cecílio, no fundo do porão de sua casa, vivia os fatos causados pelo mundo e por sua vontade. Vitimava Juliano, amarrado e amordaçado numa cadeira ao centro da sala. Decidiu fazer isso pra estabelecer a ordem; ou então só pra esmigalhar mesmo a cara de Juliano com seu mangual improvisado - um saco de pano com pedregulhos ao fundo, amarrado no topo, que simplesmente existia em seu porão.

Pobre Juliano. Vivia inúmeras vidas e inúmeros fatos. A sua própria vida era viver essas outras vidas. Era escritor. Deu-lhe na telha de escrever sobre Cecílio. Pior: sobre como Cecílio era pacato. Que controvérsia. Cecílio sentiu-se violado, como se alguém houvesse lhe roubado os fatos da vida. Sentiu-se injustiçado. Sentiu inveja de todos os seus semelhantes. Sentiu-se um pastel.

Mas é verdade, Cecílio era tão pacato. Todos os vizinhos concordavam. Trabalhava numa agência de propaganda, era diagramador. Era diretor de arte. Fizera até umas boas peças que a gente vê por aí, em revistas, na internet. Voltava cedo pra casa. Era solteiro, mas era comportadíssimo. Só levava mulheres decentes ao seu recanto. E nem levava tantas. Raramente saía à vida noturna. Não era alcoólatra, nem pervertido. Nem fumava, o bom rapaz. Era simpático e tinha um belo sorriso, que jamais hesitava em oferecer à vizinhança. E sim, foi por isso tudo que Cecílio cometeu sua vingança.

A face direita de Juliano já aparentava uma massa quase indescritível. Parecia macarrão à bolonhesa, com bastante carne bem moída; é, era o que parecia. Seu aspecto era uma tragédia. Ele que já vitimara tantas invenções, as quais chamava de personagens, fora quase que letalmente esfacelado por Cecílio. Sobreviveu e demorou muito tempo pra sair do estado vegetativo no Hospital da Ordem. Mas a marca de Cecílio jamais desapareceu. Juliano não mais tem face.

6 comentários:

Anônimo disse...

Rapeize, você está pronto para "O MURO".
Tua proza já tá quase lá. Só que o Sartre põe um tanto a mais de ácido nas entranhas do texto.

O seu também causou azia. O que falta agora é fazer o leitor buscar por um Mylanta de Bolso perdido pelas gavetas, como nosso amigo existencialista faz.

Anônimo disse...

"proza", com Z, é uma variante muito usada para quem revisa o texto depois de postá-lo.

Lírica disse...

Proza com Z pode ser uma alusão inconsciente a Prozac. Hahaha.
Mas, Joe, vc manja sobre ego-ideal- evocando a psicanálise-? Porque esse título e todo o desenrolar do enredo remetem muito a esse quadro de reencontro com o narcisismo primário... Impressionante! E assustador!

Heyk disse...

nada demais, a não ser o argumento:
um escritor que é aprisionado com um diretor de arte pra ser torturado de graça.

isso é legal.
de resto... pastel

gostei dos comentários das pessoas!

Heyk disse...

ah, e gostei da cara nova do quadrado.

Heyk disse...

isso talvez seja uma grande coisa: bons argumentos. Isso é boa parte da coisa, acho.

Ah, a lírica tem razão da coisa dos usos do ego.