sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O Filósofo Teimoso

Segurou a caneta sem firmeza, fechou os olhos e pôs-se a escrever:

Não escreva.

Abriu os olhos curioso e tomou um susto ao ler as duas palavrinhas. Em seguida, concentrou-se novamente. Permaneceu estacado por alguns minutos. Paulatino, o mundo foi diminuindo ao seu redor. Finalmente, sentiu a alma de Gomes Peixoto em seu próprio corpo, conduzida por uma impressão curiosa; algo como a pressão que se sente quando se toma injeção. Acometia-lhe essa mesma sensação todas as poucas vezes que prestou-se à recepção espiritual. Sua pena tomou vida:

Não quero que escreva sobre mim. Não tenho nada a dizer.

Certo. Gomes Peixoto era um espírito rebelde. Nunca tinha ouvido falar de uma psicografia que houvesse falhado por falta de cooperação do espírito.

Resolveu respeitar o pobre diabo. Deitou as costas no encosto da poltrona macia e evitou o café recém preparado do bule, pra que as idéias lhe fluíssem preguiçosamente. Levantou após dois bocejos e saiu à rua. Foi vagar ponderando sobre Gomes.

Está claro que este nosso escritor não era lá um sujeito ocupado. Mas fazia-se ocupar das idéias literárias. Ultimamente, experimentava a literatura espiritual. Contudo, seu espírito correlato - um filósofo do século passado - era tal qual burro empacado.

Sentou-se em um ponto de ônibus e fez força pra baixar o filósofo. Enfim, empunhou a caneta disposto a comprar a briga.

Não.

"Não o que?" Indignava-se. Pausou mais uma vez e foi lógico: "cê vai falar", foi o que disse de si pra si, como se para o filósofo. Conquanto não largasse a caneta, arrancar-lhe-ia as palavras.

Não quero dizer nada e não vou explicar minhas razões. Não lhe devo nada.

Esboçou um sorriso público. Havia lhe arrancado duas sentenças e catorze palavras. Estendeu a caneta e pôs-se à continuação. Contudo, nada se escreveu. Na folha jazeu um borro grosseiro e só: Gomes sacou.

O escritor fez-se emburrado e, ainda naquele dia, abandonou aquela péssima técnica literária. Jamais voltou a praticá-la, mas Gomes Peixoto floresceu em todos os seus romances seguintes, protagonista em uns, figura passante em outros.

Um jeito literário de se vingar.

2 comentários:

Lírica disse...

Legal. Muito legal. quando eu estou lendo um bom autor, fico muito impregnada de seu estilo. Como numa possessão espiritual. Como sugere seu conto. O autor não pode me impedir. Mas se pudesse, como no conto, eu provavelmente não imaginaria uma vingança tào riginal quanto a do personagem. O que aliás é um recurso legal no sentido jurídico e uma forma incrivelmente criativa de possassão reversa! hahahaha. o possuído passa a possuir o possuidor.
Só vc pra pensar essas coisas. Acho que você vai florecer nos meus contos com nome e sobrenome daqui por diante! Hahahaha.

Tulio Malaspina disse...

hahahahaa!!!!
muito boa! terminei a rir sozinho aqui...
o pensamento por mais silencioso tem suas maneiras de transparecer...
algo de filosofia espiritual hahaha!
abraços!