quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Nun, Nun, Guímel!

Da taverna sairam os quatro amigos alucinados, cantando e corrompendo canções tradicionais. O ano chegava ao fim, e o cansaço do trabalho se misturava com a satisfação das obras realizadas ao longo do período. As barbas ficavam mais grisalhas na medida em que os pudores diminuiam, e a vontade de voltarem a ser meninos se esparramava nos atos infantis e boas criancices das maneiras de farrear.

- Hahaha, duvida que eu pule?

Gargalharam. Joaquim chegou a tombar no chão, reclamando - quase chorando - da dor do riso na barriga. Então, para a incredulidade de todos, Levi pulou.

- Ai, ai. Hahaha, tô vivo.

Ele não parava de rir lá embaixo, dentro da cova. Os amigos ficaram assustados no parapeito e tentatam chamá-lo, mas sem qualquer sucesso. Passada a excitação, Levi calou. Encolheu-se num canto, amedrontado, onde permaneceu por tempos muito demorados e silentes. Do escuro da cova, já avançada a madrugada, surgiu o espectro luminoso e fantasmagórico de um leão. A boca se abriu e o rugido soou vocálico:

- Par ou ímpar?

- Par - decidiu Levi.

Deu par e o leão se irritou. Outro espectro surgiu do escuro: era um homem muito grande e bonito, de pescoço longo, como os anaquins de Canaã. Tirou um dreidel do bolso e perguntou:

- Quantas moedas vocês tem aí? Preciso provar um ponto.

Levi tirou onze do bolso; o leão, dez.

- Vamos com dez então. Duas na primeira rodada?

Os três empurraram as moedas para o centro e o gigante bonito girou o peão: nun. Passou pro leão, que girou e: nun. Levi pegou o dreidel, fez a mandinga e lançou: guímel!

- Haha!

Antes da segunda rodada começar, Levi lembrou dos amigos. Levantou-se e gritou sussurado:

- Sadra, Joaquim, Nego! Cês tão ae?

Não houve resposta. Um cachorro uivava distante.

- Seus camaradas não te ouvem mais, Levi. Suporte e aceite a traição que você mesmo escolheu; custou-te maturidade, sacrifício, coragem e desprendimento. Ogulhe-se dela, homem, o tesouro da outra vida é muito mais reluzente. Aqui sua vida vai ser longeva porque sua cabeça é boa; até se comunica conosco, veja só. Quatro nessa rodada, vamo?

Nun. Nun. Guímel. O leão saiu da roda maldizendo todas as divindades babilônicas. O gigante foi consolá-lo no fundo da cova e também desapareceu na escuridão. Levi, sentindo-se sozinho e maluco, deixou-se embalar pelo sereno.

No dia seguinte acordou fora do covil, retirado por soldados rasos, e recebeu uma multa por vandalismo. Acontece que as autoridades tinham algum apreço por ele e resolveram não fazer drama. Em casa, Levi empunhou a pluma e relatou o acontecido nos documentos judiciais. Bom homem que era, discorreu condizendo com sua crença moral e espiritual; e é claro, sem contar sobre o gigante e o leão, já que preferia manter sã sua imagem. Resolveu que aquilo havia sido alucinação - medo, misturado com o fumo, a cachaça e o vento da madrugada. A única coisa que o perturbava verdadeiramente eram as vinte e três moedas no seu bolso; mas também resolveu que as havia ganhado na taverna - noite de sorte.

No documento, dizia que só por deus sobrevivera à cova cheia de feras famintas. Aliás, não soube, para si mesmo, explicar tal mistério de outra forma. Assim, dias depois de reescrever e editar o relato, enviou ao rei com as moedas de prata que quitariam a multa.

Ocorre que o rei, eventualmente talvez, simpatizou com o documento.

7 comentários:

Lírica disse...

Quem me dera... prata por meus sonhos de cova e de alcova... Mas de prata só me restam os grisalhos pelos muitos anos...
Difícil desenhar o cenário. De repente, da taberna vai-se à caverna e a baderna vira um entorpecimento. Mas nada resiste à realidade. Ou melhor: nada resiste ao desejo... até o rei, real, realidade, eventualmente simpatiza com o humilde sonhador. No mínimo, seus inconscientes se lêem...

Mayara Facchini disse...

Pois nessa noite passada eu tive um sonho que julguei ser insano! Um casal em seus trajes de casamento e amarrados por uma corda pulavam juntos e morriam pesados como uma angora ao fundo de um rio poluido. O rio secara e o vestido de noiva com o terno branco permaneciam na terra seca, limpinhos e de mangas dadas. Eu achei que sonhos de pulos estranhos na virada de ano so podiam acontecer comigo. Agora lendo seu pulo de morte terei que transformar o meu em historia, certo?

Fabio disse...

Fudido... mas não espere que eu comente como essas duas ae rs.

Saudade de vcs aqui no prédio, os almoços não serão mais os mesmos.

Abs.

Camila S. disse...

Um pulo pode ser caro ou muito lucrativo. Só depende de quanto e do que foi consumido naquela noite na taverna.

Luna disse...

tempo que não venho aqui. amanhã coloco teu blog em dia!

meu blog andava muito dolorido. acabei por deletar e seguir com quotes. continuaria com os posts se não me chamassem de depressiva. haha. saco. preciso atualizar. porém, como sobrar tempo em SP? estou devorando concreto! adoro.

Rachel Souza disse...

sempre venho aqui. vc que nunca vai lá.

Leo Curcino disse...

você é um puta moleque de futuro! vai longe!