segunda-feira, 28 de julho de 2008

Aristeu Jardineiro

Aristeu, jardineiro, era, ninguém o sabia, narcisista e artista escultor. Era quieto e calado e morava numa casa afastada da mansão. Construiu em alguns anos um porão no meio do jardim, e lá se trancava a todo entardecer para esculpir o belo. Em sua consciência, ele era a imagem da beleza traduzida espacialmente em corpo e vida. A perfeição estética estava lapidada em seus cachos, em suas mãos firmes, em seus músculos vivazes, em seu rosto simétrico e olhar profundo.

Por conta dessa percepção de si e do mundo, o jardim que cuidara desde pequeno se parecia muito com ele. Eu mesmo nunca ousei pensar em substituí-lo.

Então, a idade o abocanhou as costelas como um leão do diabo, e o jardineiro mudou. Passou a não ser mais caprichoso em seu labor, e a melancolia maculou sua expressão. Sumia em seu porão durante dias, empenhando-se em resgatar sua juventude pura e bela, enquanto seu espírito definhava sem lentidão.

Meus cabelos e barbas iam brancos quando o vi aparecer na curva da estrada da mansão. Arregalei os olhos e apurei os ouvidos: ele uivava de dor, cambaleando de um jeito horrível. Havia serrado as pernas na altura das canelas e substituído por membros jovens de mármore, presos por cravos e tiras de couro agora banhadas de sangue e poeira da estrada. Seu corpo pesava a cada passo que dava e sangue brotava da fenda carne-pedra. Em suas mãos trazia um vaso bem esculpido e polido, da mesma pedra branca:

- Meu senhor, quero ser enterrado jovem, mas já passo dos cinqüenta. Peço-lhe...

Parou para gemer um choro de dor.

- Imploro: queime essa carcaça velha que é meu corpo e lance os restos neste vaso. Ele deve ser segurado por mãos que tive outrora, jovens e belas.

Explicou-me aonde era o porão, e disse, sofregamente, como reconhecer sua obra-prima – uma entre muitas imagens do artista quando jovem. Os braços da escultura haviam sido desenhados para segurar o vaso que trouxera em sua súplica.

Ele morreu ali mesmo, sem sangue, pálido como a imagem de seu narcisismo. Eu morri minutos depois, no mesmo lugar, vitimado por um derrame.

Aristeu, deus dos jardins, foi enterrado velho, pelo tempo.

3 comentários:

Beatriz disse...

Victor, cada vez melhor, cada vez mais, cada vez que eu venho aqui vc me supreende. Ah, e cada vez mais rápido. Conciso. Vc misturou as figuras fílmicas e miticas? O Aristeu que conheço cuida de abelhas e o jardineiro mais incrível representado por Peter Sellers num filme antigo. Não propriamente narcisista, mas autista, talvez, o que quase dá no mesmo.

Mas, este Arsiteu , de repente, qdo surge com as pernas cerradas bateu a imagem de um filme que vi numa mostra de cinema . que era sobre os últimos dias de Lênin:seu isolamento, suas questões existenciais, uma perplexidade diante do fim.

E vc traz um clima de horror pela realidade paralela. Esta imagem aqui é fortíssima: a idade o abocanhou as costelas como um leão do diabo. ( acho que seria o abocanhou pelas costelas?). Enfim, é de uma beleza estonteante este conto.

Desculpe,o tamanho do comentário, é que vc traz a atsmosfera desse filme. Uma névoa narcísica(esverdeada no filme) que eclipsa a realidade. Só escutamos passos, vemos sombras. Procure. Acho ..não é certo que se chama Taurus. não sei o resto. é russo o diretor tb.

Victor Meira disse...

Legal, Bê, a multiplicidade das referências. Aristeu é personagem da mitologia grega, semi deus. Aí, o que não vai faltar é referência no cinema, literatura e na música.

Escrevi contemplando a escultura de Bosio, quase homônima ao meu conto.

E vou atrás da referência indicada.

Heyk disse...

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