sexta-feira, 11 de julho de 2008

Quanto Sangue

Éramos dezesseis bebendo chope na frente daqueles outros de jalecos brancos. Ríamos e conversávamos sobre tudo enquanto ouvíamos, como que de soslaio, a conversa da mesa de trás. Sim, intimamente condenávamos o que se passava: eles nunca conversavam sobre outras coisas que não fossem a fratura do menino no plantão de ontem, a infecção daquele paciente desleixado, o outro que só vem pra reclamar da vida, um que vem no meio da madrugada porque não para de espirrar, o outro que veio cheio de aros de bicicleta enfiados na perna, e outros mil casos. Nunca conversavam sobre outra coisa qualquer - um romance, um filme, um caso cômico do fim de semana. Só sobre a profissão.

Talvez os condenássemos porque o fruto da escolha que fizeram ao fim da adolescência pudesse ser melhor que o fruto da nossa. Havia a possibilidade. Talvez a paixão deles, pelo que fazem, fosse maior do que a nossa. E claro, não suportávamos isso. De vez em quando temperávamos o papo com um detalhe ou outro sobre o trabalho. Mas nós, em nossa roda de risos e chopes, conversávamos sobre muitas coisas.

Um deles levantou, como que pra ir ao banheiro, mas puxou um bisturi do bolso e veio ameaçador pra cima de nossa mesa. Jotapê levantou num solavanco: o primeiro a perceber o ataque eminente. Sacou um estilete de sua mochila e foi pra cima dele. Aí todo mundo levantou. O papo todo daquele tribunal cheio de olhares tortos e ouvidos atentos de inveja se ergueu como um mar em tempestade. Os jalecos brancos brandiam tesouras, lâminas, agulhas, bisturis. Nós empunhávamos estiletes, canetas de pontas afiadas e réguas de metal. O Henrique voou em cima de um dois boçais e arrancou-lhe um olho com um lápis bem apontado. Uma garota da mesa deles, corpulenta, rasgou o ventre do Jotapê com uma enorme tesoura. Cheguei a ganhar um talho de bisturi nas costas, mas meti meu estilete bem afiado na traquéia de um deles, lado a lado. Banhávamos o bar com sangue e ódio.

Ao fim, sobramos eu, Ciço, Juliano e Cecília, contra três deles. Havíamos praticamente ganhado a batalha. Ciço e Juliano imobilizaram dois deles em poucos movimentos. Restou um, desprotegido e corajoso. Apenas nos encarávamos. Vi que Cecília estava bem posicionada e resolvi avançar, quando percebi a desmedida que eu acabara de cometer: sem ameaçar diretamente o valente de jaleco manchado, impedi-o de se mover. Ele se satisfez num brado rouco:

- Empate.

Ao fim de todos os medos, de todas as escolhas erradas e das conseqüências de todos os atos, as peças voltam para o mesmo lugar.

5 comentários:

Beatriz disse...

Victor, cada escolha tem seu preço. A meu ver o lápis do escritor causou maior dano, arrancou um olho.
Vc me surpreende, comecei a rir qdo um deles levantou pra ir ao banheiro e partiu pra cima. A escuta do grupo do lápis e da caneta incomodava sem perceber.
Beleza de final. gostei muito.
*estamos na versão 7!!!

Heyk disse...

gostei do inesperado, e do fim que me saquei bem. dessa vez eu volto, me dê uns dias.

Rachel Souza disse...

Que bom isso, menino!
O embate, o lápis no olho... O jaleco branco deu um ar sórdido pra coisa,uma coisa meio debochada, meio nada. Viajei no comentário?rs
Beijo!

AEmarcondes disse...

cada lado com seus trunfos e defeitos. a guerra nao se resolve apenas pelas armas, mais pela vontade.
legal cara. gostei

Lírica disse...

Meu amigo... só faltou o piso ser quadriculado! Este conto é demais.
Dezeseis "nego" contra outros de branco... a batalha... E as "peças" voltando ao mesmo lugar?! Jogada de mestre. Parabéns.