Gardel é pra ser ouvido em caixinha mono. Tem algo de especial nisso. Adentrei o bar escuro e vi o Ciço sentado num dos banquinhos altos do balcão. Costumava ser qualquer coisa entre um bodhisattva e João Gilberto. Tomava uma cerveja e tinha a expressão amortecida.
- Cada um apontou sua arma pro outro e bam! - disse com o olhar pairando no nada.
- Cedo ou tarde, ia acontecer.
- Eu vi os miolos pintando as paredes brancas e o teto. Eu vi acontecendo.
- Me leva lá.
Ele negou com a cabeça. Deu um gole. Deixei-o no bar e fui sozinho mesmo. Saí pela porta dos fundos e vi a alvorada que bocejava no céu. Antes de descer ao cenário da tragédia, passei por uma Belina que tinha o porta-malas escancarado. Ali dentro, na penumbra do fim da madrugada, jaziam os restos defuntos de um porco. Seu aspecto humano fritou-me os nervos.
Desci a escada e entrei pela porta arrombada do porão. No cubículo ensangüentado estavam os dois corpos atirados no chão, com as cabeças
Num canto escuro do quarto vi um vaga-lume, inconsciente da vida, ziguezagueando no ar. O inseto voou astuto até a porta e me revelou, não sem um arrepio, Ciço, sombrio. Ele trazia o porco morto nos braços. Peguei a pá, atrás da porta. Levamos os corpos para o térreo e nos afastamos da casa.
- O amor é o único sentimento individual.
- Não, Ciço, não vem com essa. Essa besteira não existe.
- Existe. Eu vivo isso.
Emudecemos. Apenas pensávamos, enquanto a pá produzia seu som metálico na terra pedregosa e seca. Finalmente, decidi:
- Hoje é o último dia de julho.
- Ahn?
- Hoje é o seu último dia.
Assassinei-o com amor, e enchi a cova com todos os cadáveres.
7 comentários:
Tá virando um sanguinário, meu bravo amigo.
Tô adorando. Vamos nessa.
Que legal... Quanta coisa boa aí, né. Isso é história mesmo. eba.
victor, seguinte:
voltei a postar. mudei o endereço do beijo: http://heykpimenta.blogspot.com
vmaos conversando, lindão. bjo.
Gardel é apersonificação da nostalgia. Concordo. O "lugar escuro" é um bar... Hum... Interessante. Mas há tb um porão...
Peraí, paraí... Ciço matou Julho, que tinha matado não sei quem? E o porco?... É, não deu pra entender. Talvez pq não haja razão, como diz o próprio conto... só paixão...
A madrugada boceja e na terra porcos e homens e sangue!!! Muito boa essa idéia, Victor.
Mata-se e morre-se por nada. Ou é tudo e eu não percebi.
Bem bom
Gostei! Que sujeito macabro e humano, hein?! Gesto de amor igual esse aí, quero não...rs
Bjo!
caixinha mono e akele barulhinho da sujeira do vinil! hahahahaha tá muito bom cara, sempre buscando montar o quebra-cabeças perfeito do sentimentalismo literario dessa vida, óh poeta.
dinamismo!
Abraçossss
cara isso é muito bonito.
Me lembra o Chico'Spirro. Amor assassino. Gostei!
Belo blog e um ótimo conto.
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