terça-feira, 5 de agosto de 2008

O Enterro de 31 de Julho

Gardel é pra ser ouvido em caixinha mono. Tem algo de especial nisso. Adentrei o bar escuro e vi o Ciço sentado num dos banquinhos altos do balcão. Costumava ser qualquer coisa entre um bodhisattva e João Gilberto. Tomava uma cerveja e tinha a expressão amortecida.

- Cada um apontou sua arma pro outro e bam! - disse com o olhar pairando no nada.

- Cedo ou tarde, ia acontecer.

- Eu vi os miolos pintando as paredes brancas e o teto. Eu vi acontecendo.

- Me leva lá.

Ele negou com a cabeça. Deu um gole. Deixei-o no bar e fui sozinho mesmo. Saí pela porta dos fundos e vi a alvorada que bocejava no céu. Antes de descer ao cenário da tragédia, passei por uma Belina que tinha o porta-malas escancarado. Ali dentro, na penumbra do fim da madrugada, jaziam os restos defuntos de um porco. Seu aspecto humano fritou-me os nervos.

Desci a escada e entrei pela porta arrombada do porão. No cubículo ensangüentado estavam os dois corpos atirados no chão, com as cabeças em frangalhos. Não havia mais razão naquela história.

Num canto escuro do quarto vi um vaga-lume, inconsciente da vida, ziguezagueando no ar. O inseto voou astuto até a porta e me revelou, não sem um arrepio, Ciço, sombrio. Ele trazia o porco morto nos braços. Peguei a pá, atrás da porta. Levamos os corpos para o térreo e nos afastamos da casa.

- O amor é o único sentimento individual.

- Não, Ciço, não vem com essa. Essa besteira não existe.

- Existe. Eu vivo isso.

Emudecemos. Apenas pensávamos, enquanto a pá produzia seu som metálico na terra pedregosa e seca. Finalmente, decidi:

- Hoje é o último dia de julho.

- Ahn?

- Hoje é o seu último dia.

Assassinei-o com amor, e enchi a cova com todos os cadáveres.

7 comentários:

Heyk disse...

Tá virando um sanguinário, meu bravo amigo.

Tô adorando. Vamos nessa.

Que legal... Quanta coisa boa aí, né. Isso é história mesmo. eba.

victor, seguinte:
voltei a postar. mudei o endereço do beijo: http://heykpimenta.blogspot.com

vmaos conversando, lindão. bjo.

Lírica disse...

Gardel é apersonificação da nostalgia. Concordo. O "lugar escuro" é um bar... Hum... Interessante. Mas há tb um porão...
Peraí, paraí... Ciço matou Julho, que tinha matado não sei quem? E o porco?... É, não deu pra entender. Talvez pq não haja razão, como diz o próprio conto... só paixão...

Beatriz disse...

A madrugada boceja e na terra porcos e homens e sangue!!! Muito boa essa idéia, Victor.

Mata-se e morre-se por nada. Ou é tudo e eu não percebi.
Bem bom

Rachel Souza disse...

Gostei! Que sujeito macabro e humano, hein?! Gesto de amor igual esse aí, quero não...rs
Bjo!

Tulio Malaspina disse...

caixinha mono e akele barulhinho da sujeira do vinil! hahahahaha tá muito bom cara, sempre buscando montar o quebra-cabeças perfeito do sentimentalismo literario dessa vida, óh poeta.

dinamismo!
Abraçossss

AEmarcondes disse...

cara isso é muito bonito.
Me lembra o Chico'Spirro. Amor assassino. Gostei!

Anônimo disse...

Belo blog e um ótimo conto.