sábado, 27 de setembro de 2008

O Feito do Diabo

O diabo surgiu em meio à reunião familiar, no alto do quadragésimo andar. Era vistoso como um galã de cinema, grande e forte. Sua presença fez o céu silenciar na convergência de todos os olhares. Os corpos, como que congelados, apenas observaram sua seguinte ação. Com um movimento leve, fez um dos andares do prédio vizinho explodir de dentro para fora, como que por uma bomba instalada lá dentro.

Dos olhos dos mais sensíveis vazaram densos desesperos calados. A presença constritora fez o prédio inteiro ser engolido pela terra, por completo, sem que afetasse quaisquer outras construções. Finalmente, manejando o ar em sua intervenção gestual sobre a realidade, fez a terra regurgitar o prédio, completamente destruído pela digestão subterrânea.

Os familiares, tios, avôs e toda espécie de parente velhinho, ensandeciam. A mente de todos queimava do nife às centelhas superficiais, ecoando no crânio do vazio em frangalhos. Uma vida inteira de eventos regulares, e o fantástico no fim da vida. Sadismo do acaso; minha juventude - e talvez o cinema - me protegeram do desatino.

O diabo ficou satisfeito com o espetáculo. Realizou seu feito como um ensaio, e viu que era bom. Com um movimento mais garboso e nobre, desferiu o desfecho de qualquer razão do homem. A visão do que se teve a seguir atingiu meu entendimento. Afetou minha capacidade de previsão, fundamento da razão. Todos os prédios e construções do homem, tudo que havia sido feito por mãos e razão foi engolido pela terra. Aconteceu no mundo todo. Em seguida, a terra vomitou o alimento, em destroços. Toda a superfície do mundo agora era apenas uma lembrança, uma recordação caótica e devastada do que uma vez havia sido cotidiano.

Ninguém morreu por causa do feito diabólico. Mas ninguém entendia mais nada. Um vento de pura loucura soprou na superfície do planeta. Chegara a hora do homem reinventado. As próximas gerações nasceriam de uma humanidade louca. O que morreria além da carne? Tudo renasceria. Tudo.

2 comentários:

Lírica disse...

Eu tenho dito que outro Freud talvez tenha que nascer para dar conta das invenções humanas no campo comportamental. Psicanaliticamente, sabemos o que um prédio representa.
Vc ainda se vê representado neste décimo primeiro andar?
De qualquer forma, não apreciei a visita...
Desconstruções e recosntruções podem ser atos divinos. E geralmente o são. O diabo pode ficar feliz com suas bagunças, mas não opera, nem na fantasia de um conto, o renascimento.
A nós, resta o expectar.
Somos as nossas crenças. Mexer nesse edifícil requer o compromisso de saber o que se está fazendo.
Ou há um bem, e um mal para lhe fazer contraponto... ou já estamos loucos.
O que será que vc viu ser destruído? Por que o atribui ao diabo? É tão doloroso que pode levar ao desatino, a menos que se conte com a fantasia da juventude?

Rachel Souza disse...

"Uma vida inteira de eventos regulares, e o fantástico no fim da vida." o texto inteiro valeu por isso.
Beijo!