terça-feira, 21 de outubro de 2008

Lixo Obelisco

Na janela vê-se, pela fenda entre cortinas, o prédio escuro da frente e, nele, uma outra janela, que sustenta outro mundo e talvez mãos tão enrugadas quanto essas que caçam as letrinhas do teclado, escrevendo sobre o escuro da minha janela emoldurada pela fachada iluminada do prédio de cá. Um gole de uísque com suco de pêssego ao meu ego negativo da outra janela. Há um cansaço qualquer, e uma falha do álcool em minha sobriedade. Uma preguiça de tossir e a aceitação do corpo estranho dentro do meu organismo; o vidro esvaziado.

Levanto pra passear às três da manhã e o céu caminha comigo sobre o chão silencioso. Nenhum carro presencia o grito lá longe de um rapaz voltando pra casa, alegre e enojado da vida. O taxista não cochila; três garotos descobrem o gosto refinado de um Montecristo nº5 no ponto de taxi, e conversam sobre coisas que comovem e incomodam o motorista. A porta metálica de um bar é fechada, cima a baixo, ruidosamente. E cada uma dessas coisas que acontecem tenta ser reproduzida por um artista plástico do décimo andar que tem menos idade e mais vontade do que eu.

Chego ao meu destino. O lixo orgânico impera como um obelisco no deserto de luzes, asfalto, concreto e noite. Ergo os ossos velhos pra tentar colocar a garrafa de uísque; esforço-me em vão, já que o buraco é inalcançável. Faço mais um esforço qualquer, com a cabeça baixa pra ver se estiro mais o braço e, enfim, sinto o fundo da garrafa encaixar na boca do lixo. Empurro só mais um pouquinho e meu braço despenca, exausto. Satisfaço-me e me ponho no caminho de volta, onde provavelmente não haverá o grito do rapaz ébrio, nem o ruído metálico da porta do bar. A garrafa ficou metade dentro do lixo, metade fora, apreciando o céu púrpura-laranja enevoado.

Nem percebi que você me observava de algum lugar perto do lixo.

Lixo Obelisco é uma singela homenagem à trilogia das cores, do Kieslowski.

6 comentários:

william disse...

Cansaço e percepção elevada no silêncio da madrugada.Gostei da descrição do entorno e dos outros observados e observadores dentro desta mesma noite.Até.

Guto Leite disse...

Gostei muito também! Frases enxutas, precisas, grande poder imagético! Não conheço a trilogia, mas se ela for boa, fez jus. Grande abraço e arte!

Anônimo disse...

Nostalgia, busca, solidão, sensibilidade. Ingredientes deliciosamente misturados numa noite poética, bela, suja, sórdida e sedutora.
Amei.
Lírica.

Rachel Souza disse...

Um texto de observações, um ambiente noturno, por vezes soturno. gosto disso!

Heyk disse...

Mano, nem sei qual a relacao com a trilogia das cores, curioso.
vou olhando.

Abracoca, babe cola.

Heyk disse...

E sabe, aconteceu uma outra coisa:
A coisa dos três caras incomodando o taxista me lembrou mesmo nós três eu vc chamé, pirando no táxi depois das satyrianas. Que doidera.
E foi perfeito reler esse texto de pois de um tempo.
Como é bom ele né?
COmentei a discussões nossa lá no maná. tem coisa que talvez valham a pena pôr em posts mesmo.

Abração mano. TÔ voltando. TÔ sem internet em casa