sexta-feira, 6 de março de 2009

O Silêncio das Cebolas

O suor faz arder meus olhos. Tem muita gente apreensiva, músicos e leigos, prestes a contemplar o bebop da nossa big band. É meu primeiro solo desde que o Carlino me fez o convite. Diz ele que eu sou talentoso, e que ia compor duas peças especialmente pra mim, tendo em vista minha virtuosidade. Uma delas vai ser apresentada hoje, pela primeira vez.

Uma semana antes, cheguei em casa pelas duas da manhã de quarta-feira. Voltava de uma performance que fiz em um bar pequeno, de bairro, com uma bandinha formada por bons amigos. Havia sido ótimo, mas a falta de sobriedade me prendeu por mais tempo no corredor, à procura da chave.

Ao acender as luzes percebi que meus amigos haviam chegado antes que eu. Os quatro - Marcelo, Careta, Zé Bicão e Flavinho - estavam voltados para a porta, em torno da mesa, olhando para mim. Era meu aniversário, e eles haviam preparado uma boa surpresa. Caminhei até eles com passadas vagarosas e fronde inclinada pra baixo, olhando nos olhos de cada um com um olhar brincalhão e um sorriso amarrado nos lábios. Ninguém disse nada, mas o tom era de muita alegria. O mundo calava sem deixar escapar um som sequer. Meus amigos riam um riso gostoso, mostrando os dentes e arqueando as sobrancelhas. Depositei o Bronquite - meu trompete - sobre a mesa e constatei a surpresa que me haviam preparado: uma cebola crua, descascada, e uma faca amolada ao seu lado.

Celo, Careta, Bicão e Flavinho se sentaram junto comigo. Comecei a suar, e meus olhos arderam - estavam todos apreensivos. Desde pequeno eu nunca consegui suportar nem mesmo o cheiro de uma cebola crua. Falando sério: nunca fui enjoado pra comer, e sempre tive esse meu asco idiossincrático como um traço justificável, já que era tão bem compensado pelo meu gosto incomum por outras comidas não tão populares como o jiló, o quiabo, ou o rabanete. Bicão empurrou o pratinho pra mim. Olhei novamente pra eles e todos riram em silêncio. Flavinho quase chegou a gargalhar. A falta de som era fundamental e estava enraizada no momento litúrgico.

Peguei a faca na mão. Minha cabeça se encheu de rabiscos e memórias sonoras dissonantes. Mas era uma só ocasião, talvez não doesse muito. Ao penetrar o corpo da cebola com a faca, minha mão fervilhou em formigamento e nervosismo. O calor infernal que emana do bulbo queimou minhas pupilas. Disso, respirei fundo, espetei o pedaço cortado e, temerosamente, o abocanhei. Então veio o inevitável. Milhares de demônios insurgiram do chão do aposento, translúcidos de chamas vermelhas e cheios de escárnio com seus tridentes de pura vilania. Todos avançaram em meu estomago, e fizeram irromper de minha garganta o uísque consumido durante o musical. O cheiro e o aspecto do vômito sobre a mesa não alterou meus companheiros. Celo limpou tudo rusticamente e se sentou para a continuação do espetáculo.

Fiquei mais pálido e mais fraco. Esfaqueei novamente o coração do diabo e meti mais uma fatia na boca, o que fez insurgir mais um vulcão de velhos complexos. Todos se seguravam pra não desabar em estridentes gargalhadas. No terceiro pedaço meu estômago apenas se debateu e dobrou. Mas engoli toda a angústia. Meu corpo a tudo negava, com muita força. Ao quarto pedaço os demônios começaram a se render, e então eu peguei a cebola inteira na mão e a abocanhei como se fosse uma fruta doce e madura. Eu não pensava mais. Minhas vísceras se debatiam em agonia e se embrulhavam em desespero, mas nenhuma venceu a minha vontade. Tão logo dei a última mordida, desfaleci exausto, completamente exaurido. Deve ter havido música e gargalhada durante minha inconsciência.

- Tá preparado? - disse Carlino, que colocava paternalmente a mão em meu ombro, sustentando o mesmo sorriso dos meus amigos no dia da surpresa do meu aniversário.

Sorri nervoso à pergunta no momento em que os aplausos explodiram na platéia.

Era hora de entrar.

7 comentários:

Anônimo disse...

Faz um tempo tenho lido sua obra, aqui e no Maná Zinabre. Você realmente é um escritor refinado, imagético e autoral. Você parece conectado a outro tempo, aquilo necessário para fazer do escritor atemporal. Muito bom, colega!

Tenório

Beatriz disse...

Fera! Sempre suspense.
Cebola daime/!
Sax bronquite..e por aí vai o Victor escrevendo cada mais e melhor.

Lírica disse...

Confesso que tenho medo de ler seus contos! O suspense, o mistério, a ironia de cada coisa e o relaismo fantástico vão contraíndo meus músculos e dilatando minhas pupilas em meio à penumbra até que se descortine o desfecho, sempre colossal.

Adriana Riess Karnal disse...

sempre vejo textos bem escritos por aqui, e com um a ponta de humor...gosto muito disso.

Anônimo disse...

poxa, que lindo o texto!!
talento nato com as palavras, muito bom!

abs :)

aron disse...

ô nêgô, os comentários aqui tão bão!

além do que já disseram, gostei muito. :D
especialmente dos detalhes calorosos, afetivos.
bronquite foi mto bom. hahahaha :D
o final é delicioso.

mas, sendo honesto, ou desatento, não senti tão profundamente o suspense como relataram aqui nos comentarios.

um bjo meu rei nego

Adriana Godoy disse...

Não conhecia, agora conheci e gostei muito desse texto que desperta sensações esquisitas com coisa tão pouca como a cebola. O seu jeito de conduzir a história me agradou. Já passei por aqui algumas vezes, mas nunca deixei um sinal. Pois bem, agora posso voltar qualquer hora para conferir sua prosa e seus poemas.

PS: Também participo do poema dia.