sábado, 4 de abril de 2009

Medo Grisalho

Os sons do fogo atirado trilhavam o risco de uma emersão assertiva. Me perdi no tempo em um esconderijo onde se atrofiavam meu rifle e meu espírito. Quanto mais avançava a guerra, menos eu arriscava a minha cabeça. Um soldado se lançou no refúgio em que eu me acocorava, assustando-me sobremaneira.

- Cadê o comandante? - perguntei num impulso, buscando um norte, uma razão.

- Levou quatro tiros ontem. Caramba, há quanto tempo você tá aqui?

Sussurrávamos. Ele tinha bigode grisalho e uma faixa azul atada ao braço que segurava a metralhadora. Eu estava naquele canto há muito tempo, famélico e num estado quase narcoléptico, sem saber de qualquer situação estratégica ou numérica da batalha.

- Nem sei mais... Mas então, o que fazemos? Qual é a ordem?

- Nenhuma. Os capitães também foram alvejados. - pausou, respirando com mais calma. - Aliás, pra quê um comando, do jeito que as coisas andam?

Deduzi que nosso lado perdia. Logo, cada um por si, e salvem-se os fortes. Comecei a sair da tocaia para acabar de uma vez com aquilo - pra descobrir se eu era um dos fortes - mas, impetuoso, ele me puxou de volta:

- Onde você pensa q-

- A gente tem que-

- Idiota, olha aqui, os comandantes deles também já estão mortos. O campo agora tá minado com soldados escondidos, todos com a cabeça estragada que nem a tua. Cê não vai sair daqui, entendeu? Se sair vai acabar levando bala de gente nossa. Tá vendo isso aqui?

Desafivelou o capacete no queixo e meteu o objeto no meu peito.

- Isso é um tiro de raspão. A morte beijou minha têmpora, soldado, tá entendendo? Não faz nem dez minutos, foi logo aqui na frente.

Me olhou com profundidade. Desceu devagar os olhos, então, prendendo o capacete no lugar. Eu apenas olhava espantado, como se um milagre de um épico houvesse sido contado pelo próprio...

- ...herói.

Escapou. Ele me deu um murro na cara. Achei que mereci. Depois, ele disse, recomposto:

- Sabe o que aconteceu? Acaso, soldado. A mão do vento soprou a morte para uma próxima. Sou um sortudo, e só, e agora o mundo é um punhado de malucos espalhados por aí, um querendo matar o outro pra poder sair vivo. Quem não mata, morre. É simples.

O soco me trouxe algum sangue à cabeça, dissolvendo minha passividade:

- Vou morrer a qualquer hora feito louco, ou de fome. Não tem diferença. Acho que perdi o instinto de sobrevivência que me mete o medo: agora meu corpo exige o desespero. Aliás, já devem todos estar assim.

Meti decidido a cabeça pra fora do esconderijo, empunhando o rifle preparado, sondando qualquer ameaça.

- Tá tudo limpo, não tem ninguém aqui - disse sem olhar pro soldado veterano. O silêncio me fez voltar a cabeça em sua direção.

Ele não estava mais ali. Não havia mais ninguém. Percebi que há minutos também não se ouvia os barulhos do fogo. Tudo silenciava terrivelmente num espiral morrediço que envolveu um raio de quilômetros. Resolvi sair então da tocaia e comecei, feito zumbi, a caminhar por entre os escombros e fumaça. Caminhei por quase uma hora, em círculos cada vez mais largos. Decidi voltar para a base de comando, onde haveria leito e suprimento.

Cambaleei por muitas horas até chegar. Alguma coisa fora destruída, mas, em geral, as estruturas resistiram. Não havia uma alma no mundo. Confundi a fome com o silêncio, o sono com a solidão, o céu com a realidade.

Comi até me fartar, sozinho, olhando para as mesas rústicas e compridas, vazias. O único herói da guerra havia desaparecido. Sentia ainda resquícios de seu soco enquanto mastigava. Para onde teria ido? Sumira tão de súbito. Haveria sido sonho, alucinação?

Fiquei a me perguntar se havia soldados escondidos em tocaias. Talvez a morte não me quisesse tanto. Talvez todos os homens tivessem resolvido dormir - já que isso também está no protocolo dos instintos de sobrevivência.

Dormi por mais de vinte horas. Quando acordei, o mundo continuava um mistério. Não havia nem aves, e as árvores não são vivas o suficiente para o alento de um homem sozinho. O lugar implorava para ser explorado, mas, depois de dormir e me alimentar, o medo recuperara as forças.

Volta e meia a memória do soldado veterano me cruzava os pensamentos. Quanto mais passava o tempo, mais sua lembrança se vitimava por enigmas da minha mente. Depois de tanto dormir, não poderia ele ter sido sonho deste último sono recente?

9 comentários:

Adriana Riess Karnal disse...

capítulo de livro?

Lírica disse...

Cara, a simbologia é demais: buraco-inconsciente travando guerras que já nem há... a consciência já grisalha pq ela sim, tem noção de tempo... O comandante seria um bom representante do superego que já não tem poder de comando, mas a consciência com sua fita azul é salvadora, guia, continente!
... Voltar à base, reabastecer-se, repousar, o misto de intuitivo/sensorial... tudo retrata com sensibilidade a dualidade imaginário/real na qual transitamos.
Fantástico.

Adriana Godoy disse...

As imagens vão se formando à medida que leio e quero saber mais até o final em que se encontra um lugar com árvores meio mortas com aves que não estão lá. Um sonho? Um previsão apocalíptica? Sei lá, sei que gostei.

Benny Franklin disse...

Bom de bom, irmão!
Abçs

Rachel Souza disse...

Escrevi mais um dia do "Semanário".Fique de olho no café.rs
Beijo.

Beatriz disse...

Appocalipse now!

Bic Muller disse...

a forma como se escreve, vai nos abrindo facilmente a imaginação como se as imagens fossem colocadas lá já prontas.
incrível.
gostosa leitura
um beijo

Lucas Vallim disse...

Muito bom!

aron disse...

Vitao... irmao... que evoluçao!
muito bom, meu rei...
tá ótimo... kra.

Gostei como começa. Dos dois personagens. Estao equilibrados... E o encontro dos dois é algo interessante sim...
A transicao de realidades, ou passagem, ta muito legal..

Medo grisalho...
gostei lindao
queria conversar con ud. sobre... ;)
poe no 2 conto xD


Bjó!