domingo, 19 de abril de 2009

Revelação Sabatina

Fui acometido por uma vontade irreprimível de me jogar pela janela. Levantei, tomei um resto de carménère que havia em cima da geladeira e me lancei do décimo andar. Durante a queda, o mundo se revela: um escuro não absoluto, cheio de linhas translúcidas e coloridas que formam o desenho da paisagem que se move muito rápido. Tudo transparece, tudo fica nu.

Da janela, corro até o parapeito para observar meu corpo em queda, se movendo desajeitado, mas pacificamente. Um par de namorados passa do outro lado da rua, em direção contrária à de um menino que vaga sozinho. Na janela do hotel, um casal de meia idade fornica. Há um carro vermelho - não sei diferenciar carros por marcas - na direção do meu corpo que cai. Surgem, dessa queda, confabulações e imagens. Por um instante decido não ver o sangue do fim, e me lembro do vinho em cima da geladeira. Entretanto, não consigo deixar de ver o desfecho, e permaneço na janela.

Um barulho seco abala a tarde sabatina.

Quando abri a porta, logo depois de estacionar, meu próprio corpo caiu como um meteoro do céu, quebrando o vidro da frente, e me salpicando de cacos e sangue. Saí às pressas do carro, terrivelmente chocado. Do outro lado da rua, notei abismado que eu estava morto em cima de um carro vermelho. Segui meu olhar para o provável ponto do salto, e me vi, lá na janela do décimo andar, observando tudo.

Momentos depois, eu apareci em dezessete janelas ao redor do incidente. Minhas expressões variavam do horror ao espanto, do choro à palidez. Na janela do quarto andar eu só mostrei indiferença.
O mundo acontece numa profusão de realidades paralelas.
Depois, o porteiro chamou a ambulância.

5 comentários:

Lírica disse...

Que impressionante! Vc nos recorda do fenômeno de termos uma consciência além do eu. Mais de 17 pares deolhos além dos nossos... que devem representar o modo como julgamos que somos julgados ou vistos... ou como precisamos ou desejamos ser vistos. Mesmo que para tanto nem mais sejamos.
Tmabém pensei na parte... ou parte de nós que queremos que nao mais viva.
De qualquer forma ainda há muito superego... muitos olhos... e a parte "indesejada" ou negada... a que se precipita e morre obstrui a visão (parabrisas)do ego.
Por que esse corpo cai? Por que morre? Por que cai sobre si mesmo?
Tá pesado ainda, né? Mas pelo menos tá sendo dito.

Guto Leite disse...

Parceiro, que beleza de conto! Gesta em seu interior um mecanismo requintadíssimo que investiríamos horas discutindo, fato, rs... abração e parabéns!

Carina disse...

eu vim só pra dar uma olhadinha, mas o primeiro parágrafo me prendeu até o fim. Gostei mto!

Um belo conto com cara de Victor Meira. Congrats!

Rachel Souza disse...

Se o porteiro chamou a ambulância,tá tudo resolvido.rs

Iuri disse...

Ou não.