terça-feira, 27 de outubro de 2009

Vermelho e Pardo

Rosu era íntimo do desvio natural de sua mira. Vestia-se como fogo e as flechas eram sete faíscas em sua aljava - a oitava ia na corda tensa, à altura dos olhos. No canto da percepção, Maro fazia cobertura na caça ao Pássaro de Fogo, cuja pena incandescente não parava de arder nem mesmo quando arrancada. A ave descansava sobre qualquer um dos dez mil galhos.

Entreolharam-se decidindo pausa e o mais novo sacou o celular do bolso pra ver as horas. Em seu inventário, escopeta e capa parda para se camuflar ao ambiente - era mais calculista que o irmão. Onze e quarenta: uma hora de distância até o almoço. Um vento mau bateu no mormaço dos sentimentos de Rosu, doando-lhe repugnância; pensou que qualquer modo de Maro o houvesse desanimado e recostou-se numa árvore oca.

Então houve o tão esperado bater de asas e ambos se projetaram para a copa que farfalhara. Rosu brandia o arco quando sentiu a mão do irmão no seu braço, forçando-o a abaixar a arma: Maro era sistemático quanto à caça, por demais litúrgico. Sem consciência disso, irritava sobremaneira o irmão com seu código de métodos obsessivos acerca das posições das armas, dos pés, tempo correto, mímica e concentração. Rosu respeitava por preguiça e amor, mas afetava-se com a própria atitude; encobria, toda vez, um desespero infantil e amargo com a capa da aquiescência.

Afastou-se do irmão e estendeu mais uma vez o arco, se libertando. Viu um relâmpago do fogo voador e num átimo disparou a flecha, milésimos antes de ouvir o tiro da escopeta. O singular bater de asas não se interrompeu e mais uma vez desapareceu, som e forma.

O primogênito concluiu um bom pensamento sobre o pássaro:

- Maro, sabe de uma coisa?

Maro cruzou os lábios com o indicador ereto, ignorando a chamada, impondo silêncio e foco. Pois enorme foi a aversão que o outro sentiu: nauseou-se pela grosseria ingênua do mais novo. O bom pensamento que jamais se expressou foi o seguinte: o Pássaro de Fogo era dono de seu próprio destino e, por isso, ofereceria seu corpo a quem bem entendesse. A lenda articulava que o vencedor seria o caçador de coração imaculado, prudente e altivo, bom como o cão e corajoso como o louco. Daí, excitava-se com a moral da mitologia: de nada adiantaria qualquer habilidade do caçador, exceto uma: o conformismo. O pássaro era o acaso em si, e um cego poderia ganhá-lo ainda que em meio a cem atiradores de elite.

Rosu vomitou.

Fogo cruzado, explosões em sua mente: sabia que se fosse da vontade do acaso, o Pássaro de Fogo bateria em sua janela e pousaria submisso ao próprio fim. Afinal, qual é a força de um entendimento? Às vezes tentava compreender as motivações de Maro, mas sabe-se lá o que o mantinha tão vivo e ativo. Talvez a simples execução do próprio universo sistemático lhe fosse suficiente para uma vida de plenitude.

3 comentários:

aron disse...

Adorei o conto, negô.
Essa auto-consciencia do mito pessoal é algo... interessante. Você explora bem isso. As vezes tratando as personagens como uma criança que sem saber já anda de bicicleta sem as rodinhas de ajuda, e ela sabendo, cai. E outras como se ela já soubesse que assim iria ser, sistematicamente. É interessante...
Como diz um amigo: vou digerir.
Gostei muito.
Fica o bjo.

tenorio disse...

Caríssimo Meira,

Rapaz, iniciei um novo blog, onde vou divulgar meu romance em capítulos virtuais. Estou te convidando a passar por lá, mas com baita medo. Pois o material talvez lhe pareça muito simples, se comparado a sua prosa exuberante e refinada... Também temo que sua percepção muito dilatada veja brechas em minhas frases, e consiga metalmente verticalizar a proposta, coisa que vai além da minha capacidade. Enfim, de qualquer jeito faço o convite, quem sabe não me ajuda a construir uma narrativa mais rica?

Meu abraço e admiração

Tenório

garciavaimorrer.wordpress.com

Lírica disse...

Intuitivos e sensoriais...
Todos mirando no mesmo alvo...
cada um com seus objetivos, crenças, ritmos e necessidades.
cada um com sua dose de sadismo e de masoquismo...
E pássaro se equilibrando eles.