terça-feira, 6 de maio de 2008

Alegro, Adágio e Andante

Levei os fones aos ouvidos e selecionei o alegro de um concerto pra violino de Mozart pra andar com cadência no chão de algodão de uma ruela de Salzburg. Aliás, o branco se limitava aos cantinhos marginais da rua, já que por obra dos transeuntes o chão se fazia numa mistura de neve e barro escuro que me detonava as barras da calça. Mas era belo e eu tinha leves impressões de ver Mozart se escondendo atrás de cortinas e esquivando-se em esquinas. As casas tinham cores fortes e me faziam sentir pequeno de uma forma totalmente diferente dos prédios da metrópole brasileira.

Ao fim do alegro, deu-se início o adágio que continua o concerto. Naturalmente diminuí o ritmo dos passos enquanto o violino suave e brincalhão me introduzia à praça em que se ergue escura a estátua do compositor que dera vida e imortalidade à melodia que me sorria aos ouvidos. Admirei-o como pupilo. Súbito a estátua adquiriu uma expressão de cansaço e olhou pra mim. Olhei pros lados na praça e havia passos e movimento, mas nenhum olhar para o absurdo. A estátua, sem perder o tom metálico e piche, sentou-se.

- Vida de estátua não é mole.
- C-como? Mozart?

Olhei desconfiado pros lados. Ninguém se alertava.

- Qual delas você tá ouvindo?
- Qual de quê? Ah, música? O comecinho do alegro da sinfonia número 41, Júpiter.

Ele estendeu um sorriso e começou a brincar com os indicadores como se regesse o exato trecho que eu escutava.

- Vamos dar uma volta, rapaz. Como se chama?

Disse-lhe. Andamos e a melodia da sinfonia foi a nossa conversa por algum tempo.

- Você nunca veio a Salzburg, não é?
- Não, é a primeira vez. Sou de São Paulo.
- Claro, não há dúvidas de que você é brasileiro. Mas você não entendeu minha pergunta.
- Que quer dizer?
- Você nunca veio a esta cidade. Estou errado?
- Você tá me confundindo. Já disse, é a primeira vez que venho à Áustria.

Moldou uma feição de insatisfação sem olhar pra mim. Por fim, arqueou as sobrancelhas pra mudar de assunto.

- Essa cidade é uma merda, nunca gostei daqui. É pequena e as pessoas são pequenas. Saí daqui o quanto antes e agora estou fadado, encarcerado nesse galinheiro. Só não me jogo de um sobrado desses por respeito ao artista que me modelou.

Findou-se o alegro, iniciou-se o andante.

- Ao menos tenho todas as minhas melodias de memória, e as ouço retumbantes quando garotos surgem naquela praça com esses aparelhinhos mp3, como você.

Sorri ao comentário.

- Sabe, isso que você respira e que chama de ar, pra mim é música. Aliás, de certa forma, todos respiram música na medida em que o som se propaga pelo ar. Disto, os ouvidos são não menos fundamentais que seu nariz e pulmões, já que respiram toda a música do mundo. E tudo que há no mundo é música. A tarefa do músico é organiza-la, como tudo o que o homem faz. Sim, tudo o que o homem faz é organizar. É a sua forma de entender as coisas. Padronizar. A noção do ideal e da beleza é, em outras palavras, a ciência da perfeita organização. Só não se engane com adjetivos pequenos de quantidade. Organizar é um verbo de amplitude infinita.

Minha mente vagava pela melodia daquelas idéias. Por mais alguns minutos me entreguei à melodia enquanto caminhávamos na neve barrenta das ruas estreitas daquela bela cidadela que ele tanto odiava.

- Me diga a verdade agora, você nunca veio a Salzburg.
- Por favor, não faça isso.
- Diga.
- Não é necessário.
- É claro que é, vamos. Você nunca veio a esta cidade.
- É verdade. – resignei-me por fim.
- Você nunca esteve, e simplesmente não está em Salzburg.
- Mozart, meu leitor não precisa saber disso.
- Mas é bom que saiba. Nosso ofício é sobre contar verdades através de mentiras. Que a mentira fique bem clara aqui.

Tudo bem, ele estava certo. Chegamos finalmente a um agradável café e passamos o entardecer num diálogo sinfônico.

5 comentários:

Lírica disse...

Sublime! De uma delicadeza angelical. Não são palavras... são sentimentos orquestrados por uma batuta poética, ousada, cheia de desejo e sensibilidade. O mestre, o aprendiz, as lições, a retórica, o cenário, os recursos de linguagem, a linguagem musical, mas ao mesmo tempo pictórica... Quanta riqueza! Este merece maior repercussão. Mande pra uma editora... uma revista... faça panfletos, cole nos ônibus, metrô... no mural da faculdade... Fabulous!!!!!!1

Anônimo disse...

é, joe. já nao dá pra esperar nada menos do que isso.

transparente mas equilibrado, esse conto. igualzinho mozart


parabens, rober

Heyk disse...

é, vou dizer: te muitos elementos muito legais aqui.

Acho felizinho demais e tal. Mas é um bom texto mesmo, com uma testrutura bem feliz, feliz já no sentido de ter acertado, entende?!

Parabéns, isso é trabalho. Tem filozofia e sociologia no texto. E uma noção artístico-ensaísta bem legal!

Respiramos música! É seu isso?

Heyk disse...

Ah, e concordo com as formas de divulgação que a lírica propôs!

Unknown disse...

Por motivos nada óbvios, ao final da leitura eu ri de satisfação.
Excelente e muito bem estruturado.