sexta-feira, 30 de maio de 2008

Cegas Meninas Belas

A sala enevoava com a fumaça de seus devaneios. Sentia-se à vontade e transformara o que fora conversa em discurso seu. Segurava sua caneca de cerveja escura e todos se sentiam acolhidos. Em seus olhos, uma venda vermelha e espessa barrava sua visão.

Sua platéia era composta de lindas mulheres, exteriorizadas, floridas de toda sua beleza. A beleza de cada era incrível e radiante, singular. Mas devo retroceder alguns passos nessa narrativa.

Horas antes, ele vestiu boas roupas e saiu comigo de sua casa. Ele pensava muito, e eu o sentia distante. Era agradável, mas vagava absorto de maneira a me irritar, às vezes. Conduzi seu veículo; era o jeito que sempre preferira, afinal, sua venda o impedia de dirigir. Quando chegamos ao apartamento da Laís ele foi logo para a sacada.

Permaneceu quieto por alguns minutos. As moças e madames que ali trocavam frivolidades, contando fatos não tão engraçados de suas próprias vidas – e rindo-se deles de forma cênica e quase deprimente -, todas, sem exceção, eram bastante regulares no que diz respeito à beleza. Nenhuma era bonita ou atraente, nem particularmente feia.

O tempo passava num ânimo constante e médio, meio sem graça, cheio de risos rasos. A falta de maldade ou sequer malícia, de todos ali, prometia uma espécie de amizade que justificava e confortava todas elas. Nada era hostil, tudo era morno, como as mulheres gostam. As conversas eram quase infantis, de tão ingênuas.

Então ele começou. Com poucas palavras, lançou sua magia como uma teia sedutora por todo o cômodo. Vagarosamente, a feição das garotas começou a mudar. As paredes começaram a ganhar tons estranhos e sala se escureceu lentamente. Eu, num canto da sala, abri a minha bolsa, puxei um lenço azul e vendei meus olhos. Já conhecia aquilo. Todas as outras, coitadas e desavisadas, ficaram cegas. Eis sua obra prima.

Conforme falava, tudo se tornou treva absoluta. As mulheres se esqueceram do mundo e de tudo o que mais há. Todas eram as mais lindas. Todas eram cegas, completamente cegas. Nenhuma enxergava sua próxima. Todas eram únicas. Todas eram a mais bonita. Sentiam-se completas. Conheceram uma felicidade quase doentia e o mundo deixara de existir para elas. Entraram num estado de transe. Levantaram sem qualquer sugestão do mágico, e começaram a dançar de olhos fechados, como sonâmbulas de sorrisos satisfeitos.

Percebi que agora ele conhecia muito mais aquele apartamento do que a própria dona. Para ser sincera, aquilo definitivamente já não era mais o apartamento da Laís. As paredes, o chão, tudo se moldara por sua vontade, e assumira uma forma que lhe aprazia. Por puro sarcasmo, conduziu-as para um quarto nos fundos do apartamento. O último quarto jazia no fim de um interminável corredor. Percorreram o caminho como se estivessem dentro de uma enorme serpente; o chão e as paredes moviam-se terrivelmente, mas elas dançavam com leveza, felizes e seguras. Finalmente, a porta os engoliu e o resto, pra mim, foi reticência.

Fiquei fora do quarto e não sei o que se passou lá dentro. Procuro me convencer de que nada demais acontecera. Escutei sons indescritíveis nesse meio tempo, vindos de lá. Berros, gargalhadas, choro, grunhidos. Às vezes um borrão de luz escapava pelas frestas da porta. Ele demorou muito pra sair.

Já era madrugada quando saiu. Tinha a feição exausta. Saiu sozinho e trancou a porta por fora, deixando as garotas lá dentro. O silencio se derramava em todos os cantos, como se tivesse colocado todas para dormir. Abaixou-se e deslizou a chave pela fresta debaixo da porta. Assim que acordassem e pudessem enxergar o mundo novamente, saberiam como sair de lá, e se lembrariam de tudo como um sonho maravilhoso.

De lá saímos, e eu já estava cansada. Descemos e caminhamos até seu veículo. Chegando, afrouxei minha venda. Sua mágica tinha passado, afinal.

Ele jamais tirava sua venda.

5 comentários:

Alben disse...

Parabéns Victz.

O texto me passou diversas impressões. A que mais marcou, pela interpretação rápida que os afazeres profissionais me autorizaram foi a de que o personagem da venda vermelha é algo como um sedutor, um sofista, alguém habilidoso o suficiente pra inebriar apenas com palavras.

Também senti a sinergia da cegueira causada pela fala.

Prometo lê-lo novamente com o carinho e atenção que merece.

Abraços.

Henrique Maeda Smith disse...

Rapaz, gracioso!

Foi, realmente, uma leitura agradável.

Heyk disse...

grandão pra internet, né?
gostei menos da linguagem. achei uma linguagem um pouco conservadora pras belezas que o texto tem. mas adorei. não gostei de coisas específicas, um excesso de pronome demonstrativos pra lá e pra cá, aquele, aquela, aquelas mulheres, aquele e esse não sei o quê. Coisas de gosto. Esse excesso de pronome assim dá um cara de como se o leitor já soubesse a descrição das coisas (aquele quarto! - Ah, sei) Mas a gente não sabe, então soa enigmático mas pouco eficaz.

Mas é mais isso que não gostei. O resto achei super legal. E dá-lhe universo fantástico neles. Òtimo.

Beatriz disse...

Victor, belo texto. "Ele" acha que mulheres gostam de coisas mornas? Sei! E "Ele" anda muito enevoado rsrs. Eyes wide shut?

Beatriz disse...

Ah, Victor
Leio seus textos que adoro e pensei se vc não gostaria de aproveitar o http://www.overmundo.com.br/
Talvez, vc já conheça. é uma espaço de trocas. acabei de entrar e já recebi algumas sugestões. estou achando bacana. quem sabe?