domingo, 14 de setembro de 2008

Meu Amigo Vicente

Era um dia quente e dourado no quarto abafado pela luz cortinada. Eu lia alguns escritores amigos, como de costume das poucas horas vagas. Vicente, meu companheiro canino, mordia, concentrado, um biscoito. Dispersou-se então, e veio ter comigo em busca de uma troca de afagos. Acariciei sua cabeça dourada e dei-lhe uns tapinhas afáveis no dorso. Satisfez-se e se pôs ao seu canto e à sua meditação.

Algo que os sentidos do homem não captam aconteceu. Possivelmente, um evento sonoro muito sensível. Vicente ouviu e aguçou as orelhas, alerta e protetor. Ganiu uma vez, seguida, segundos depois, por uma seqüência de curtos e agoniados choros. Tentei acalmá-lo e me surpreendeu: à minha intervenção, começou a rosnar mostrando todos os dentes e ferocidade. Meu amigo sumiu. À minha frente estava um lobo, um cão encarnando um espírito ancestral, livre de toda docilidade que o fazia companheiro e doméstico. Apavorei-me. Tentei, por impulso, torná-lo dócil novamente, o que impulsionou sua investida contra mim. Saltou em minha direção e abocanhou-me o braço que usei para defender o pescoço.

A essa altura fica difícil descrever qualquer ação. Não nos recordamos, com freqüência, do que nos ocorre quando a adrenalina nos faz homens primitivos e instintivos. Lutei contra o louco Vicente com socos, tapas e choques contra as paredes, mas ele não arredava. Mordia cada vez mais forte meu braço, que já estava todo rasgado, banhado de sangue como meu quarto inteiro. Havia muito sangue, isso posso afirmar. Mal sabia se houvera fratura ou qualquer coisa. Havia dor e pavor, ímpeto e desespero, numa batalha entre dois amigos, entre fera e dono, instinto e - se posso assim dizer - razão.

Não me lembro se fiz a escolha que regeu minha seguinte ação. Faz-se coisas odiosas, repulsivas, por instinto. Mordi o pescoço do cão e com isso me pus em pé de igualdade. Meu corpo já não apresentava tanto vigor por causa da hemorragia, mas minha mordida pesou-lhe a fúria e o fez afrouxar levemente a mordida.

Permanecemos durante longos momentos em luta carnal, feérica. Que haveria causado toda a diabrura? Senti seu sangue brotar em minha boca, e rasguei-lhe a pele, como fazia com a minha. Cuspi entre socos e luta, e voltei a morder-lhe o mesmo local, agora exposto. Soltou, finalmente, pela primeira vez, meu braço, e ganiu, me arrebentando o coração. O coração, porém, já havia abandonado tudo. Avancei junto com ele para um novo combate. Dessa vez, mordeu-me o ombro, e eu lhe mordi o focinho, repelindo-o novamente. Travamos um terceiro, um quarto, um quinto round. Perdi as contas. Esqueci-me do resto em negrume.

No dia seguinte, acordei no hospital. Meu irmão e minha namorada me velavam. Contou-me, ele, com poucos detalhes, do que vira quando abriu a porta de casa. Ela me contou que Vincent havia morrido.

4 comentários:

Rachel Souza disse...

Que batalha estranha hein!rs Lutar com o próprio cachorro até a morte, dele, parece bem cruel... e engraçado!
Beijo!

Lírica disse...

Que embate "convincente"! Foi-me agarrando como Vicente agarrou o braço de seu dono! Fantástico: como a libido brota do universo inconsciente e tenta dominar o ego sem explicação plausível, e devora as defesas de que dispomos, e não entende outra linguagem que não a da voracidade. Quando o ego, em seu instinto de sobrevivência prevalece sobre o id, porém, não é sem muitos arranhões e às vezes cortes profundo e fraturas.
Ps chatinho: Faz-se coisa... ou fazem-se coisas. Ou já mudou?
Seu conto é uma resenha psicanalítica!

Tulio Malaspina disse...

1 introdução, 4 clima, 1 conclusão.
esse favorecimento é um dedo na ferida.
um abraço!

Heyk disse...

já gostei do primeiro parágrafo, sou dinãmico e insensato e por isso leio o texto já na caixa de comentários.

segundo parágrafo bom. adoro quando são de ação.

paradinha explicativa e avaliativa no terceiro paragrafo, estrutura interesante.

No quarto parágrafo, o inusitado.

Cara, isso é quase semiótica mesmo, ou música, no quinto parágafo o humor. Fantástico, e depois do humor vem um impasse.

Fim, que coisa. será que sou maluco: a gente tem que terminar assim neutro, com pouca surpresa? É difícil por fim nas coisas.

SUper texto. terminou morno.