segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O Desconhecido

No bolso da minha camisa havia uma caixinha de fósforo e apenas um palito - a verdade em si.

Não lembro em que dia da semana eu morri. Mal me lembro das circunstâncias. Lembro de um atraso; de um sentimento fundamental; uma conversa, um assunto imemorável. Enfim, um apagão de lembranças desimportantes. O extraordinário é esse posfácio da vida. Um punhado de mitologias e religiões acertaram - até as cristãs, vê só: há consciência aqui, na morte. Consciência e símbolo. Minutos atrás me deparei com um espaço de vastidão estelar; à minha frente um elevador antigo e grosseirão abriu a porta com um apito desajeitado: entrei e aqui estou, subindo há algumas horas, rumo ao céu. É pra conversar com deus. Sei porquê tá numa plaquinha meio carcomida na minha frente.

Sempre pensei como seria conversar com deus. Se ele é a infinitude, o absoluto, o eterno, como pode estar reduzido a uma forma? Pior: a uma personalidade. É inconcebível - qualquer definição é limitadora por natureza. Já ouvi dizer que ele é todas as possibilidades e, portanto, se daria numa forma adequada ao contemplador. Aí é que tá: se o contemplador tem ciência de que a expressão de uma existência é por si só limitadora, como se dá deus?

Senti que me aproximava da sublime revelação primordial; minha dúvida era completa e complexa. Ao encontrá-lo, deus se limitaria, submisso, ao meu pequeno entendimento. Que auspício audacioso.

Subi por muito tempo e, enfim, cheguei com o enunciado do elevador: meus olhos contemplaram o mundo. O mundo normal, que se conhece em vida. Mata virgem e fechada à minha volta; mosquitos e calor. Um mal estar familiar, e uma falta completa da espiritualidade que sentira a pouco. Pisava no mundo objetivo, preciso, de fenômenos e existência. Será que era o andar errado? Não podia ser: no elevador havia um só botão, onde se lia "deus", e na plaquinha tava escrito: "primeira conversa póstuma: acesso ao harém de deus". Então era em algum lugar por aqui.

Meus braços ficaram marcados de escoriações que ardiam no suor da andança. Trepei uma árvore grande e lá de cima olhei à minha volta: meu olhar desdobrou uma planície de mata fechada. Só então me veio um lampejo: este era o harém de deus. O mundo, em si. Talvez a parte do mundo menos maculada pelo homem, mas era isso. Desci, e me sentei numa clareira. Meditei por muito tempo.

A transcendência: deus é o desconhecido. É o infinito e o eterno conhecimento que falta ao homem. Deus esteve em todo lugar, com todos os homens, em toda a história da humanidade. O desconhecido sempre foi a possibilidade de todas as formas, uma existência inextinguível e onipresente. Enquanto solvia o enigma, percebi que este era o diálogo, acontecendo por si só. Seu nome foi uma de suas primeiras revelações - e, assim que me fora revelado, deixou de ser. Toda a verdade se consumiu por si mesma a partir do momento em que surgiu - à maneira do palito de fósforo.

5 comentários:

Anônimo disse...

palito de fósforo, único como deus.
a fé no elevador porque é preciso estar numa máquina estranha para se aproximar da essência humana...mas se o elevador parasse? não tiha um botão de emergência? deus também conserta elevadores?

muito bom o texto, victor!

ps: obrigada pelo comentário. acho que aquele texto foi um vomito apenas, um vomito cheio de pedaços.

beijos!

Lírica disse...

Estávamos mesmo precisando de um novo Kant. Hihihihi.
Estive pensando em como as pessoas não conseguem ser felizes por mto tempo... Talvez a felicidade seja uma pontinha da orla do manto de Jesus (Deus materializado). Então, como vc sugere aqui, Deus é o inapreensível. Ou como Kant disse, o incognoscível. Assim que pensamos tê-lo apreendido, o insight se apaga como a chama do único fósforo.
Sensacional sacada, Joe.
Esse aí é o meu filho, pessoal!!!!
Hehehehehe.

Leo Curcino disse...

e sera esse um texto cetico? essa coisa de debater com si mesmo é um trunfo que vc guarda na manga (ou seja no bolso junto com a caixinha de fosforos?).

muito bom, cara! a questao da onipresença é algo que me chama atençao desde moleque. acreditando ou nao, é um assunto que vai longe.

Victor Meira disse...

É isso, Leo. Deus é sempre um bom exercício do pensamento.

Tulio Malaspina disse...

graaande victor!! muito bom o texto, de inicio um pouco duvidoso mas no desenrolar uma boa resposta: a onipresença (como dito pelo leonardo).
muito bem colocada a idéia de que este já é o diálogo(ou monólogo?) da nossa "salvação", e bem representada pelo único palito de fósforo.
a vida, o diálogo, a chance.
únicos.

tá criando uma profundidade nos textos que é altamente estimulante!

meu e-mail é o mesmo do msn: skyhoopeer@hotmail.com

grande abraço!!