quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Uma Supressão no Tempo

Dia primeiro de julho, amanha é meu aniversario. Fechei os olhos e dormi com esta sentença.

Soou. Botei queijo e mortadela no pão matinal. Lavei o rosto e fui disposto para a padaria, onde Paulo passava pra me dar carona até o ofício. Ainda estava escuro quando ele parou no Starbucks - o café de lá era um coice, bom pra tirar a cabeça do travesseiro. Fiquei no carro observando seu andar magro e sério; tinha cabelos loiros de crioulo e roupas manchadas. Saiu do estabelecimento acendendo um cigarro e permaneceu olhando o sol nascer no horizonte; a carpintaria era bastante afastada do centro. Um ator circense vestindo altas pernas de pau cruzou-lhe o caminho, ao que Paulo volveu a cabeça me dando um meio-sorriso de deboche. Entrou no carro, por fim:

- Dia maluco.

Sei. Tinha qualquer delicadeza escondida naquela frase. Ele sabia que hoje era o meu dia.

O blues dos Allman Brothers preencheu o restante da ida. Chegando, uma surpresa fatal me recebeu na entrada. Fui pendurar meu casaco quando deitei os olhos no calendário à porta do galpão: dia 3. Como? Peguei meu celular no bolso do casaco e constatei: 3 de julho. Não! Onde foi parar o dia 2?

Todo embaralhado, abordei Manuel na passagem pela porta:

- Que dia é hoje?
- Dia três, pois, não tás vendo ai? - disse com o chilrear açoriano.

Era dia 3 mesmo. Será possível que eu tenha esquecido de ontem? Não, tenho firme certeza: ontem havia sido dia primeiro. Manuel pendurava o casaco.

- E que dia foi ontem?
- 'tas maluco, é, gajo? Ê maria...

Era dia 3. O tempo havia engolido um dia. Olhei para todos se locomovendo pelo galpão: Dimas juntava uma pilha de fórmica para serrar; César media uma peça de fibra; Davi procurava por lixas um pouco mais grossas para acelerar o trabalho; Manuel limpava o bico da pistola de ar e Paulo separava alguns pregos tamanho nove num copo de vidro. Todos normais demais, tudo qualquer coisa cotidianamente vulgar. Fui abatido por uma decepção profusa. Peguei a vassoura e comecei a varrer fiapos de madeira refilada no fundo do galpão.

Passei a manhã assistindo Dimas com as fórmicas, passando cola nas peças, espalhando as varetas e colando com cuidado. No almoço fui comer sozinho no Dairy Queens - grana curta. O dia escorreu. Na volta, colei mais algumas fórmicas e fui ajudar Davi a lixar a quina arredondada de algumas mesas de restaurante. A fórmica já havia sido colada, mas ainda precisava de retoques antes da aplicação do verniz nas partes de madeira nua. Isso demorou muito tempo. Eram mais de 40 mesas, e apenas eu me ocupava dessa tarefa. O resto da tarde se consumiu nesse fluxo contínuo e maquinal.

O expediente acabou. Manuel e Paulo se limpavam da poeira de serra com a pistola de ar. Davi desligava as luzes do fundo. Quando fui pegar meu casaco, vi César abrindo uma cerveja na cozinha. Fui surpreendido por uma rápida esperança de que hoje ainda poderia ser o meu dia...

- Até amanhã, gajo.

Não. Havia sido o dia 3.

Eu não existia naquele lugar. A supressão, no tempo, do dia do meu aniversário era a prova cabal e definitiva de que eu não mais habitava aquele espaço. O dia 3 era uma enorme lápide. Eu era uma forma alternativa de ser, uma matéria vulgar, um ente alheio, executivo de rotinas que apenas faziam translação em torno da realidade, farejando utopias e bons sonhos.

No dia 3 de julho meu aniversário submergiu no âmago negativo do tempo.

6 comentários:

Adriana Godoy disse...

Algo fascinante esse texto. Gostei da ideia e do modo da narrativa. Interessante que tudo parece normal...beijo.

aron disse...

Terminei o conto e disse pra mim mesmo: Que horror!
Lindo conto, nego.
Permeado com o tempo e sua eterna fuga. Me senti mal.
Bjo, ô rei.

Lírica disse...

Angustiante! É interessante isso de fazer parte, significar... não apenas estar, mas ser!
Vc é mestre em narrativa e cativa por meio de personagens frágeis, embora resilientes.
E tem essa coisa de se reavaliar no dia do aniversário... ao ler o texto logo nos identificamos com essa tendência e isso nos captura por toda a leitura.

Renata disse...

Aguarde que este também estará no seu livro, e eu inclusive sei a foto do Jira que irá ilustrá-lo ...muahaaa! o resto ainda é segredo (até pra mim!)

hihi!
beijos, Vitório!

AEmarcondes disse...

Fico meio chocado, as vezes entro no teu blog e me deparo com pensamentos do meu dia. Tudo coincidência, lógico. Mas, entendo exatamente: roubaram meu dia. Perder um aniversário é como perder um ano...

Lírio Amarelo disse...

Sou meio atrasada ..é sobre esse que quero perguntar...
Mas uma outra hora enfrente a essa tela fria do computador..